"Sexta do autor" é uma coluna destinada aos nossos autores, podendo abordar o assunto de preferência dos mesmos.
Boa Leitura!
A-E-I-O-U
Por Mila Wander
Parte Um
Conheci Hélio aos quinze anos de idade.
Definitivamente não foi amor à primeira vista. Nem mesmo aversão. Hélio era completamente indiferente para mim, tanto quanto eu para ele. Lembro-me do modo tímido que entrou na sala de aula, escolhendo a última carteira para se sentar. Sempre foi assim, jamais quis chamar atenção. Permaneceu calado e muito quieto o restante do semestre. Não possuía muitos amigos e por isso era considerado estranho. Apenas tomei conhecimento de seu timbre de voz quase três meses depois de ter sido transferido.
Cursávamos o primeiro ano do ensino médio, mas só cheguei a dirigir-lhe a palavra no terceiro. Isso porque fomos obrigados a formar dupla para um trabalho de Literatura. Nossos nomes ficavam juntos na lista de chamada, e por isso o destino decidiu que era o momento para nos conhecermos melhor. Hélio e Helena, sentados embaixo da árvore do parque, discutindo os preceitos do barroco e do arcadismo. Ele sempre gostou do barroco, lembro-me muito bem disso. Já eu, detestava Literatura. Até o momento em que criamos, juntos, o nosso projeto que, por sinal, ficou em primeiro lugar com nota máxima.
Quero deixar bem claro que relutei bastante para trocar de dupla, sem sucesso. Queria ter feito aquele trabalho com a minha amiga Heloísa, que vinha logo após na chamada, mas ela acabou tendo que fazer com a Janice. Nunca pensei que a ordem natural das vogais pudesse transformar a minha vida por completo. A-E-I-O-U. Não podia ser A-E-O-I-U? Se assim fosse, teria formado dupla com a Heloísa... E jamais conheceria o doce sabor do primeiro amor.
Os encontros iniciais foram superesquisitos. Combinamos de nos encontrar no parque da cidade, embaixo do enorme pé de manga. Hélio sempre chegava antes de mim, e costumava observar as crianças brincando nos balanços. Sei disso porque o peguei admirando-as fixamente, sorrindo de leve e mostrando seus dentes irregulares.
Hélio sempre foi magrinho, alto e desengonçado. Falava mansamente. Sua voz, em alguns momentos, fazia minha pele arrepiar, como se as palavras pudessem acariciar os pelinhos da minha nuca. Ele abria a apostila e começava seu discurso infindável. Não olhava em meus olhos e, sempre que fazia isso, corava de vergonha. Aos poucos comecei a respeitar sua timidez e não o encarava, apenas direcionava meu olhar para a apostila e assim ficava durante horas.
Ele dava uma verdadeira aula a cada encontro. Deixava-me curiosa, disposta a aprender. Não me lembro de ter gostado tanto da matéria quanto naquela época.
Ainda me recordo da primeira vez em que nossas peles se encostaram. Foi num dia depois da apresentação do nosso trabalho. Tínhamos acabado de descobrir que havíamos ficado em primeiro lugar. Hélio, calmamente, sorriu de leve e me abraçou. Estávamos no meio do corredor e metade da nossa turma viu.
Não podia ter dado em outra: em pouco tempo, o colégio inteiro nos infernizava, dizendo que estávamos namorando.
Hélio parecia não se importar, mas toda vez que alguém fazia menção de que estávamos juntos, ficava vermelho tal qual um pimentão. Nunca chegou a desmentir ninguém, apenas eu fazia isso. Tentei explicar a todo mundo que não tínhamos nada a ver, confesso que até parei de falar com ele pelo resto do ano.
Só depois disso, as brincadeiras de mau gosto acabaram e pude ter paz novamente. Contudo, isso me custou a amizade de Hélio. Mesmo assim, todo dia, assim que eu chegava e me sentava na carteira, visualizava seu rosto do outro lado da sala, olhando para mim inexpressivamente.
O ano acabou rápido, nossa formatura passou e o vestibular tirou nossos sonos. Jamais pude me esquecer do dia da inscrição. Nossa turma foi ao laboratório de informática e cada qual se sentou de frente para um computador. Hélio ficou em um pc bem na minha reta, de costas para mim. Vi perfeitamente quando marcou uma opção, que não poderia ser outra: Letras. Sabia que essa seria sua escolha, só não fazia ideia de que eu agiria de modo tão impensado.
Foi num ato de loucura que, sem prestar muita atenção em minha própria inscrição, acabei por marcar a mesma opção dele. Não teve mais como voltar atrás e... Bem, até hoje nunca me arrependi.
Alguns meses depois, lá estava eu, andando por um corredor comprido, dessa vez com pessoas mais velhas e maduras do que na escola. Entrei na sala de aula muito equipada e acompanhei o exato momento em que Hélio me viu. Sua pele branca ficou vermelha imediatamente, como costumava ser quando nossos olhos se encontravam. Abriu de leve a boca, querendo dizer algo, mas não conseguiu. Eu apenas sorri e disse oi, mas minha voz saiu rouca e muito baixa, de modo que ele não conseguiu me ouvir.
Somente no dia seguinte ele veio falar comigo. Foi uma conversa estranha e, ao mesmo tempo, muito triste. Tínhamos largado um pouco mais cedo, por isso desci as escadarias e fui à cantina, a fim de tomar um suco. Hélio pediu licença para sentar-se comigo. Acabei aceitando.
- O que faz aqui, Helena? - perguntou, com a voz mansa de sempre. Seu rosto estava muito mais maduro do que antes e não usava mais seus velhos óculos. Devia estar com lentes, pois me lembro de que ele não conseguia enxergar um palmo a sua frente sem usá-los. De qualquer forma, percebi pela primeira vez que seus olhos eram claros, em um tom mel similar a cor do seu cabelo.
- Como assim? - perguntei meio absorta.
- Por que decidiu cursar Letras? Você odeia Literatura!
- Odiava.
Balançou a cabeça, sem entender.
- Por que se inscreveu no mesmo turno que eu?
- Olha, Hélio, não estou te seguindo. Se não me quer por perto por que não se transfere para o período da noite?
- Não é isso, é que... Eu... - Ele parou, parecendo muito confuso. Logo em seguida, olhou em meus olhos sem corar, pela primeira vez na vida. - Pensei que finalmente me livraria de você.
- Livrar-se de mim? Puts... - Mal acreditei no que estava ouvindo. - Nunca te fiz mal algum, pensei que fosse totalmente indiferente para você. Por que me odeia tanto?
- Não sei, Helena. Só odeio - Hélio disse rispidamente, levantando-se com pressa e indo embora sem olhar para trás.
Fiquei tão impressionada com suas últimas palavras que não pude evitar as lágrimas se acumulando em meus olhos. Limpei-as com as mãos antes que caíssem e me lamentei durante todo aquele dia. O pior da minha vida. Pensei em desistir da faculdade. Cheguei a enviar alguns currículos para trabalhar na área de telemarketing até o próximo ano.
Faltei todas as aulas daquela semana, mas meus pais, por fim, perceberam meu desinteresse e me obrigaram a frequentá-las.
A contragosto retornei para as aulas em uma manhã de fevereiro. Tentei sentar em minha carteira e não olhar para os lados, mas ouvi risadinhas e foi impossível não conferir do que se tratava. Uma garota loira e muito bonita conversava com Hélio, dando em cima dele descaradamente. Sabia disso porque ela sorria com malícia, tocando-o enquanto falava; segurava seus ombros, braços e, por vezes, aproximava-se demais do seu rosto. Hélio apenas ria de leve, com seu jeitinho de sempre.